Para William Ramos
Com o intuito de estudarmos um dos principais e mais influentes jusfilósofos da atualidade, iremos resenhar e debater on-line capitulo por capitulo de suas principais obras, começando por Levando os Direitos a sério.
Post feito em coautoria com Danielly Azevedo.
Hodiernamente, a doutrina penalista tem sido enfática em conclamar a mudança de paradigma que circunda o Estado, detentor exclusivo do direito de punir, e o indivíduo sujeito de direito e garantias fundamentais como menciona nossa Carta federal.
É bem verdade que, nenhum indivíduo com um mínimo de conhecimento histórico olvida dos terrores das práticas que permearam todo o ordenamento penal durante vários e ingloriosos séculos, sobretudo, na feudal inquisição e mais recentemente, na ditadura militar que assolou nosso país no final do século passado.
Por muito tempo se acreditou, seja por convicção ou por habito, que punir bem era punir com crueldade, daí a legitimação dos suplícios, das penas cruéis, das penas de banimento. Contudo, no decurso temporal tais praticas se mostraram, não apenas, ineficazes, como ainda causas geradoras de revoltas sociais.
Já no século XVII, o marquês Cesare Beccari tinha advertido no seu opúsculo Dos delitos e das penas, que a maior força dissuasória do criminoso é a certeza da punição, não o recrudescimento das penas. Lamentável que esse entendimento não tenha prosperado até nossos legisladores ordinários.
Fora, somente, a partir do movimento iluminista do século XVIII que o Estado teve seu jus puniendi domado pelo império das leis, vale lembrar que tal movimento nos legou a declaração universal de direitos do homem e do cidadão que veio a ser, posteriormente, o axioma máximo a ser perseguido pela ONU, ademais, com o advento de uma constituição republicana formal os déspotas tiveram limites humanos a respeitar inexoravelmente.
Desse modo, surgiu o devido processo legal (Due Process of Law), dando azo a vã tentativa de mitigar o Estado leviatã frente à dignidade da pessoa humana. Portanto, o devido processo legal no âmbito penal, não é tão só, um respeito a procedimentos predeterminados, é antes de tudo, uma garantia do cidadão para que, se condenado for, o Estado assegure um tratamento digno.
Impende destacar o que dispõe nossa constituição cidadã no seu art. 5° “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, nesse diapasão, bem lembra o ínclito mestre Fernando Tourinho Filho:
“O devido processo legal, por obvio, relaciona-se com uma série de direitos e garantias constitucionais, tais como presunção de inocência, duplo grau de jurisdição, direito de ser citado e de ser intimado de todas as decisões que comportem recurso, ampla defesa, contraditório, publicidade, juiz natural, imparcialidade do julgador, direito as vias recursais, proibição da reformatio in pejus, respeito à coisa julgada ( ne bis in idem), proibição de provas colhidas ilicitamente, motivação das sentenças, celeridade processual, retroatividade de lei penal benigna, dignidade humana, integridade física, liberdade e igualdade.”
No que pese o Tribunal do Júri, com igual previsão constitucional, fora instituído a época do Brasil Império, a princípio para o julgamento de Crimes de Imprensa, desde então, passou por diversas modificações. O Movimento constitucionalista de 86-88, entendendo que o Julgamento por um Conselho de Sentença seria democrático e justo, manteve-o e delimitou sua competência, para julgar os crimes dolosos contra a vida. Bem como assegurou no art.5°, XXXVIII : a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para os crimes dolosos contra a vida.
Leciona o Ministro da Suprema Corte Gilmar Mendes: “Quanto à plenitude de defesa, observa-se que há de ser garantida, tendo em vista o modelo de julgamento que se realiza perante juízes leigos. É a plenitude de defesa que permitiria a anulação de julgamento e a realização de outro no caso de defesa insuficiente, falha ou contraditória (CPP, art. 497, V).”
Destarte, defesa constitui um dos direitos mais valorosos do indivíduo e sua amplitude é o termômetro que mede o grau da democracia existente em um Estado de direito.
No Brasil, a Constituição Federal assegurou no art.5° direitos e garantias individuais, com o fito de cuidar especificamente do direito à defesa. Assim, o direito à ampla defesa (art. 5º, inciso LV), e o direito à plenitude de defesa (art. 5º, inciso XXXVIII), são exemplos desse direito que o réu detém em um Estado Democrático de Direito.
O constituinte houve por bem considerar, para momentos distintos, formas diversas de defesa. Assim, se a ampla defesa diz respeito ao processo penal de modo geral, a plenitude de defesa encontra amparo única e exclusivamente no disposto constitucional relativo ao tribunal do júri.
Há na seara doutrinária díspares teses permeando o âmbito da ampla defesa e da plenitude de defesa. Há quem defenda que ambas se consumam da mesma forma, e apresentam o mesmo conceito. Bem como, existem os que aludem que a plenitude de defesa advém da ampla defesa. Outrossim, há teses que versam a plenitude de defesa como abuso de direito.
Não obstante, de suma relevância, far-se-á, imprescindível diferenciação entre os institutos em discurso. A ampla defesa representa a viabilidade de o réu conhecer a acusação contra si imputada, para que possa acompanhar a produção da prova e, a partir de então, refutar tais elementos ou mesmo construir o próprio conjunto probatório. Já a plenitude de defesa compreende a ampla defesa, todavia de modo mais intenso e qualificado, na medida em que o destinatário da prova produzida é o juiz leigo, ou seja, o conselho de sentença.
Nesse diapasão, se a ampla defesa é suficiente para o convencimento motivado de um juiz togado, essa medida é incapaz de equilibrar a balança, quando se cuida de julgadores sem saber jurídico e que decidem por íntima convicção, ou seja, sem declarar os motivos da decisão.
Evidentemente, as hipóteses de incidência da plenitude de defesa são inúmeras e não constituem um rol taxativo. De toda sorte, a enumeração de algumas aplicações desse princípio constitucional concretiza sua existência e norteia situações similares que porventura surjam no curso da sessão plenária.
Em primeiro lugar, as recusas imotivadas na formação do conselho de sentença é incidência da plenitude de defesa. Em verdade, a escolha de seus julgadores – sem necessidade de qualquer motivação – deve ser interpretada como exercício da defesa plena, pois o réu (ou seu defensor) poderá descartar até três jurados que acredite não conseguirão levar em consideração seu ponto de vista acerca dos fatos.
Outro exemplo da plenitude da defesa diz respeito ao rol de testemunhas. Como é cediço, a preparação da sessão plenária é o momento adequado de as partes apresentarem o rol das testemunhas que pretendem ouvir durante o julgamento. Entretanto, avente-se a hipótese de o acusado trazer, no dia da sessão, uma testemunha fundamental em sua defesa. O juiz presidente poderá, em nome da plenitude de defesa, admitir a oitiva daquele indivíduo, ainda que seu ingresso no feito processual tenha-se dado, como dito, de forma extemporânea.
Um terceiro exemplo do alcance da norma constitucional se configura diante da dissolução do conselho de sentença, pelo juiz presidente, por considerar o réu indefeso, dada deficiência da defesa técnica. Nota-se que, no tribunal do júri, diversamente do que ocorre na ampla defesa, não somente a ausência de defesa constitui nulidade, mas também uma defesa insuficiente.
Enquanto os juízes togados devem respeito às leis, valendo-se, do seu livre convencimento para prolatar uma sentença, obviamente, devendo fundamentar todas as suas decisões, sob pena de nulidade, o conselho de sentença decidi por intima convicção, isto é, sem necessidade de se justificar, podendo, inclusive, ser contraditório no que diz respeito aos preenchimentos dos quesitos no momento da votação.
De mais a mais, lembramos a possibilidade da defesa argüir tese nova na treplica dos debates, do mesmo modo que poderá suscitar argumentos de natureza não jurídica, bem como de instruir o réu a mentir.
Nesse sentido, já se pronunciou nosso egrégio Tribunal de Justiça:
EMENTA: PLENITUDE DE DEFESA. TRIBUNAL DO JÚRI. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. PRÓ-DEFESA.
1. Vem o júri pautado pela plenitude de defesa (Constituição, art. 5.º, XXXVIII e LV). É-lhe, pois, lícito ouvir, na tréplica, tese diversa da que a defesa vem sustentando.
2. Havendo, em casos tais, conflito entre o contraditório (pode o acusador replicar, a defesa, treplicar sem inovações) e a amplitude de defesa, o conflito, se existente, resolve-se a favor da defesa privilegia-se a liberdade (entre outros, HC-42.914, de 2005, e HC-44.165, de 2007) 3. Habeas corpus deferido. (STJ/DJU de 9/3/09)
Ora, alguns devem está se perquirindo o porque dessa aparente quebra de isonomia constitucional para com a ampla defesa/plenitude de defesa e procedimento ordinário e tribunal júri.
Dentro das várias correntes que tentam justificar essa aparente antinomia, encontramos a explicação jusfilosofica no combate direito penal do autor (representado pelo tenaz promotor de justiça) e amplitude de defesa (representado pela sempre heróica equipe de defesa). Envolto a isso, encontramos o princípio da paridade das armas, pois enquanto o órgão ministerial busca fatos pregressos e alheios a conduta em judice, para desabonar a pessoa do réu, configurando um verdadeiro bis in idem, a defesa traz questões extrajurídicas para equilibrar a balança.
Por derradeiro cabe ressaltar, atualmente, mostra-se desafiador sustentar a legitimidade e a viabilidade de uma política criminal centrada no modelo de Direito Penal Mínimo, advogar em prol da necessidade de se reduzir consideravelmente as hipóteses de cabimento da pena de prisão, lutar pela adoção de um processo penal realmente acusatório, discursar em favor dos direitos constitucionais do acusado, pregar uma praxis judiciária compromissada de fato com o garantismo e, enfim, acreditar, com Ferrajoli, que é possível atingir um nível ideal de racionalidade no exercício do poder estatal.